Trinta e oito anos após a Lei de Execução Penal estabelecer os conselhos comunitários como uma das instâncias responsáveis por, entre outras coisas, fiscalizar as condições dos estabelecimentos prisionais do país e de assistência aos detentos, um levantamento inédito do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aponta que a maioria destes órgãos de controle social ainda enfrentam enormes dificuldades para cumprir suas obrigações.
Boa parte dos 404 representantes de Conselhos da Comunidade de Execução Penal que responderam ao questionário do CNJ informaram que a falta de orçamento limita sua atuação. Setenta e sete dos entrevistados (ou 19% do total) responderam que seus conselhos não possuem quaisquer recursos financeiros e que a escassez de dinheiro se traduz em precariedade material. O que, para o CNJ, pode “desqualificar o funcionamento” destas instâncias de participação popular causando “uma série de dificuldades para sua efetiva atuação”.
Entre os entrevistados, 182 (45%) disseram que os conselhos da comunidade em que atuam não possuem uma sede – nem própria e nem alugada. Dos 219 órgãos que informaram contar com um local apropriado à realização de reuniões, atendimentos e demais atividades regulares, a maioria (134) ocupa um espaço cedido pelo Poder Judiciário.
Mesmo que instalado em uma sede fixa, um Conselho da Comunidade de Execução Penal pode não dispor da estrutura material necessária ao seu bom funcionamento. Dos 404 órgãos representados no levantamento, 163 (40%) possuem computadores e 147 (36%) contam com uma impressora. Há conselhos sem acesso à internet, telefones e mesmo que não dispõem de móveis onde guardar documentos importantes. Em razão das dificuldades, 31% dos entrevistados informaram realizar visitas mensais aos espaços de privação de liberdade, uma das atribuições dos conselhos, prevista em lei.
Diferenças regionais
A mostra colhida pelo CNJ indica que os conselhos, que deveriam existir em todas as comarcas brasileiras, estão mais concentrados na Região Sul, de onde vieram quase 49% das respostas. Em seguida vem o Centro-Oeste (20%); Sudeste (15,5%); Nordeste (10,3%) e Norte, que apresentou apenas 21 respostas (5,2%). “Esses dados apontam para a existência de importantes diferenças regionais na existência e na organização dos Conselhos da Comunidade no Brasil”, aponta o CNJ.
A precariedade com que a maioria dos conselhos comunitários funciona pôde ser constatada na elaboração desta reportagem. Por dois dias, a Agência Brasil tentou contato com vários órgãos, de diferentes regiões do Brasil. Dos dez telefones que obteve, em apenas um conseguiu conversar com alguém. Poucos utilizam as redes sociais para dar publicidade a seus atos. Entre os que as usam, a maioria não divulga como o cidadão interessado pode entrar em contato. E, até a publicação desta matéria, um conselho de uma importante capital da região Centro-Oeste que usa um aplicativo de comunicação não tinha sequer lido a mensagem enviada pela reportagem na manhã de sexta-feira (11).
“Os gestores destes conselhos são todos voluntários que, na maioria das vezes, enfrentam a falta de apoio dos tribunais de Justiça e do Ministério Público. A Lei de Execução Penal é clara. Cabe aos juízes [de Execução Penal] estimular a criação dos conselhos, mas não basta criá-los. É preciso dar a estrutura, o dinheiro necessário para que cada órgão funcione”, disse à Agência Brasil o presidente do Conselho da Comunidade na Execução Penal de Florianópolis, Júlio dos Santos Neto, corroborando a conclusão do CNJ de que falta aos Conselho da Comunidade dotação pública orçamentária oriunda das penas pecuniárias (valores estipulados como alternativa à prisão em casos de crimes de menor potencial ofensivo) – dificuldade que os órgãos tentam contornar com a assinatura de convênios com entidades que podem ajudá-los a dar apoio à população carcerária.
Neto conta que, nos últimos anos, o conselho florianopolitano conseguiu sensibilizar o Poder Judiciário estadual a estruturar o órgão comunitário responsável por visitar 14 estabelecimentos penais existentes na comarca e por colaborar com os esforços de ressocialização de, atualmente, 1.773 apenados.
“Graças ao apoio da Vara de Execução Penal de Florianópolis, que tem nos repassado os valores de que precisamos para trabalhar, nosso conselho, hoje, conta com uma sede alugada, uma secretária, uma assistente social e uma boa estrutura. Mas até 2017, nossa situação era precária”, contou Neto, assegurando que, em outras localidades catarinenses, “há conselhos da comunidade que só existem no papel, pois não funcionam devido à falta de estrutura.
Recursos
Para dar conta de suas atribuições, o conselho recebeu, em 2021, da Vara de Execução Penal de Florianópolis, cerca de R$ 79 mil – valor que Neto pleiteia que, este ano, seja ampliado para R$ 150 mil. Não só para assegurar o funcionamento do órgão, mas também para proporcionar a execução de novos projetos que visam a ressocialização dos presos, como a oferta de cursos (de corte e costura e cabeleireiro) e apoio financeiro aos egressos do sistema penal.
“A ideia é apoiarmos o egresso que cumpriu sua pena e que, ao sair, não tem estrutura nenhuma. Vamos ajudá-lo, por três meses, com cestas básicas e ajuda para transporte para que ele possa procurar trabalho”, explicou Neto, contando que, muitas vezes, ao ser libertada, a pessoa sequer tem dinheiro para apanhar um ônibus para chegar até a casa de algum parente. “Nestas circunstâncias, a chance dele voltar a fazer uma besteira aumenta.”
Segundo o levantamento do CNJ, 178 (44%) dos entrevistados apontaram as ações de melhoria de infraestrutura de unidades prisionais como uma ação/projeto prioritário do conselho em que atuam. Cento e sessenta e um (40%) apontaram as ações de assistência material aos presos e egressos; 117 (29%) as iniciativas de trabalho e 115 (28%) as de assistência à saúde. Propostas de educação foram citadas como prioritárias por 111 (27%) dos representantes de conselhos.
Composição
A Lei de Execução Penal estabelece que os Conselhos da Comunidade de Execução Penal devem ser formados por, no mínimo, quatro membros: um representante de uma associação comercial ou industrial; um advogado indicado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB); um defensor público e um assistente social escolhido pelo Conselho Nacional de Assistentes Sociais. Na falta de indicações, compete ao juiz da execução escolher, a seu critério, os conselheiros.
Para além da composição mínima, cada conselho pode, conforme seu estatuto, convidar outras entidades da mesma comarca a indicarem seus representantes. O de Florianópolis, por exemplo, funciona com um total de 20 titulares e 20 suplentes, segundo informou Neto, que é ligado a Pastoral Carcerária.
Para o CNJ, há, neste aspecto, um outro problema: a baixa participação da sociedade civil nestas instâncias. Os dados apontam que os representantes da OAB estão presentes em 365 (90,3%) dos conselhos que responderam ao questionário, seguidos por assistentes sociais (258, ou 63% dos conselhos); representantes de associações comerciais ou industrial (221 – 55%) e juízes (181 – 44,8%).
“Esses dados apontam para o protagonismo dos atores previstos na Lei de Execução Penal e fornecem indícios de uma baixa participação da sociedade civil [como um todo]. Constata-se, por exemplo, a baixa presença, nos conselhos, de pessoas que vivenciam/vivenciaram situações de privação de liberdade ou de seus familiares, presentes, respectivamente, em apenas 12 (3%) e 22 (5%) conselhos”, aponta o CNJ, destacando que há, inclusive, conselhos que proíbem a participação de egressos e de seus parentes no órgão. “Estes pontos apresentam o desafio de reflexão sobre o papel dos Conselhos na execução penal, em especial na relação de controle e fiscalização do próprio sistema de execução [penal], incluindo a fiscalização dos Poderes Judiciário e Executivo”.