A sombra do ipê ao lado do Itamaraty já não dava conta de abrigar e refrescar os visitantes na manhã de 31ºC de domingo (4), em Brasília. Pudera: não eram um ou dois, mas mais de cem, segundo o segurança que contornou a fila contando baixinho (“111, 112, 113…”), para avaliar se todos conseguiriam entrar no turno que se encerraria às 13h.
Domingo foi o último dia da exposição “Um coração ardoroso”, o laurel ao coração de D. Pedro 1º. Entre nós desde 22 de agosto, e recebido com honras de chefe de Estado, o órgão conservado no formol foi emprestado por Portugal e cruzou o Atlântico a bordo de um jato da Força Aérea Brasileira para colorir o bicentenário da Independência do Brasil, celebrado neste 7 de Setembro.
Do lado de fora do Itamaraty, uns 50 tons de verde e amarelo deram cor ao domingo, entre camisetas da CBF, camisetas amarelo-ovo, vestidos verdes e bandeiras do Brasil pequenas, penduradas no bolso do jeans, e vultosas, usadas quase como mantos de super-herói.
Desde 23 de agosto abrigado em uma sala climatizada que fez as vezes de cripta, o coração foi visitado por estudantes do Distrito Federal durante os dias úteis. Nos fins de semana, a exposição era aberta a todos, das 8h às 13h e das 14h às 18h — era possível ficar apenas 15 minutos na sala; fotos, só sem flash.
“É como La Gioconda, né? Deve ser pequenininho e não sei se vai dar para tirar foto”, dizia uma simpática brasiliense na fila. “Lembra do Louvre?”, comentou uma amiga. “Sim, e eu nem quis descer pra ver as egípcias…”, acrescentou uma última. Eram 12h26 e o trio, antes de passar pelo detector de metais, já tinha marcado que, após conferir a Mona Lisa do Ipiranga, iria almoçar no Spoleto.
“Um amigo meu me disse: mas quem é que vai ver um coração? Tem besta pra tudo”, contou uma enfermeira de cachos acajus e camisa branca. “E eu disse: não é todo dia que vem um histórico ‘de tanto tempo’ pra gente ver.”
Entre os Dragões da Independência
Há 187 anos guardado pela Igreja da Irmandade da Lapa, na cidade do Porto, o coração desembarcou no Brasil após negociações entre autoridades e diplomatas.
A ideia da travessia para o bicentenário teria partido da médica Nise Yamaguchi (Pros), uma proposta ao presidente Jair Bolsonaro (PL), com uma articulação do deputado federal Luiz Philippe de Orléans e Bragança (PL), descendente da antiga família real.
O Itamaraty liderou as negociações, que foram “complexas”, segundo o embaixador George Monteiro Prata. “Os portugueses têm muito ciúmes dessa relíquia”, disse, no programa “A Voz do Brasil”.
Na sala climatizada no piso inferior do palácio, ficou uma narrativa mais simples. “Muitas atribulações e acasos houve entre os dois países ao longo da História, mas o que prevaleceu sobre tudo o resto foi uma fraterna amizade”, escreveu Rui Moreira, presidente da Câmara Municipal do Porto — o texto está no folheto e em um dos cantos da exposição. “Não nos pareceu correto negar ao Brasil a possibilidade de comemorar o bicentenário da Independência com a relíquia.”
Não há muita luz na sala, ladeada por uma linha do tempo com as glórias do imperador e reproduções de quadros. No centro está o coração, resguardado por Dragões da Independência e em uma vitrine especial. Mal dá para ler, na prataria, o texto gravado que conta como Amélia Augusta, “amantíssima consorte” de D. Pedro 1º, fez cumprir o desejo do marido e destinou uma urna contendo seu coração para descansar no Porto.
“Vocês vieram com a camiseta certa”, comentou uma senhora bastante idosa, dirigindo-se a uma jovem família que vestia a peça da CBF — um dos filhos pequenos, a de Neymar Jr. “E a senhora está com o coração no lugar certo”, respondeu, gentilmente, o casal. “Sou monarquista desde…”, ela ia emendar, “não lembro…”.