Foto: Renato Parada / Divulgação
Após nove anos longe da ficção, autor de “Pornopopeia” volta com uma trilogia que desafia o tempo, o bom senso — e a moda das séries curtas
Por trás de um chope no copo americano e amendoins sem glamour, Reinaldo Moraes retoma a prosa com a naturalidade de quem nunca saiu de cena. São quatro da tarde em São Paulo, o céu ameaça chuva, e o escritor — dono de uma verve crua, debochada e profundamente sensível — ocupa sua mesa predileta no Pilar Restaurante, um pé-sujo cercado por butiques caras nos Jardins.
“Morei aqui do lado até semana passada”, diz ele, já se preparando para mais uma longa conversa sobre literatura, cinema, política e a velhice em tempos de códigos morais líquidos. Foi ali, naquela mesma calçada, que nasceram as primeiras linhas de Pornopopeia, sua “egotrip de luxo” publicada em 2009 — um marco na ficção brasileira contemporânea.
De lá para cá, silêncio narrativo. Pelo menos até agora.
Reinaldo lança Maior que o mundo, romance de fôlego que marca o início de uma trilogia e retoma o universo caótico, libidinoso e tragicômico que fez sua fama. A obra gira em torno de Kabeto, um escritor em crise criativa que grava memórias, devaneios e alucinações pelas ruas de São Paulo. Reinaldo sorri ao descrever seu protagonista: “Ele está sempre em choque. Diz que entende homossexual, mas bissexual é demais pra cabeça dele. Os amigos o chamam de dinossauro ético. E ele é mesmo.”
Aos 68 anos, o autor admite que envelhecer num mundo de pautas identitárias e algoritmos é uma tarefa que exige humildade — e bom humor. “Tem coisas que meu personagem não entende. Assim como eu.”
Entre devaneios e roteiros
Depois do estouro de Pornopopeia, o escritor chegou a rascunhar um novo romance: a história de um bicheiro que mata, morre e vai parar num céu esquisito. Mas faltava carne no osso. “Não conheço nenhum bicheiro”, admite. A reviravolta veio quando um jovem cineasta o procurou com a missão de escrever uma espécie de Pornopopeia 2, ambientado na Rua Augusta, com putas e drogas. Reinaldo topou, escreveu um roteiro chamado Maior que o mundo (já filmado, com previsão de estreia), e dele nasceu o novo livro.
A primeira versão passou de mil páginas. “Aí entendi que era melhor dividir em três volumes”, conta. E por que insistir em livros tão longos? “Primeiro, porque sou um idiota. Segundo, porque minha mulher segura a onda quando estou duro, o que acontece amiudadamente. Terceiro, porque é isso que eu sei fazer.”
Um velho doido, mas lúcido
Moraes fala da atual onda conservadora com a serenidade de quem já viu o Brasil pior. “Em 1964 eu tinha 14 anos. Vivi minha juventude embaixo de milico. Com amigos presos, torturados. Fui pego também. Aí fugi pra Paris.”
Na capital francesa, teve seu momento cortazariano: bêbado, com o endereço errado, esbarrou no autor de Rayuela. Foram vinte minutos de deslumbramento literário. Lá também escreveu Tanto faz, sua estreia, em 1981. Desde então, construiu uma obra marcada por narradores andarilhos, cultos, lascivos e perdidos — quase sempre versões dele mesmo.
Agora, porém, sente o peso dos anos e das transformações culturais. Suas filhas, por exemplo, questionaram trechos do novo livro que julgaram machistas. Ele escuta, considera, mas recusa a autocensura. “Escritor não tem pai, mãe, filha, mulher. Tem que cortar os laços. Depois se entende com o mundo.”
A contracorrente
Num mercado editorial que consagra minimalismo, Reinaldo Moraes segue fiel ao romance ruidoso, digressivo, existencial. Escreve como quem nada contra a corrente — ou simplesmente ignora sua existência.
“Dizem que o romance morreu, que o mundo agora é das séries. E eu aqui, escrevendo trilogias. Fazer o quê? É a única coisa que sei.”
Em tempos de pressa, algoritmos e frases de efeito, Reinaldo Moraes escolhe o caminho mais longo. Porque é nele que mora a vertigem. E, quem sabe, a literatura.