Entenda o que é o hiperfoco, como identificá-lo nas crianças e de que forma esse recurso pode ser um aliado no desenvolvimento e na educação de pessoas autistas e neurodivergentes
Se seu filho passa horas falando ou pesquisando sobre dinossauros, planetas, animais ou qualquer outro tema específico, sem se cansar, você pode estar diante de um fenômeno muito comum no universo do neurodesenvolvimento: o hiperfoco.
Presente frequentemente em pessoas autistas, com TDAH e outras condições, o hiperfoco é uma concentração intensa e direcionada a um assunto ou atividade de alto interesse. “É como se o cérebro ficasse inteiro sintonizado naquele tema, trazendo não só prazer, mas também uma capacidade de aprofundamento muito acima da média”, explica Silvia Kelly Bosi, neuropsicopedagoga, especialista em desenvolvimento infantil, autismo e CEO da Potência – Clínica de Desenvolvimento Infantil.
Ao contrário do que muitos pensam, o hiperfoco não é algo negativo — desde que bem orientado, ele pode ser um recurso poderoso na aprendizagem e no desenvolvimento de habilidades cognitivas, emocionais e sociais.
Como identificar o hiperfoco em crianças?
O hiperfoco costuma se manifestar por meio de:
- Interesse muito intenso e duradouro em temas específicos;
- Alta capacidade de memorização e detalhamento sobre o assunto;
- Longos períodos de concentração, às vezes sem perceber o tempo passar;
- Dificuldade em se desconectar do tema, mesmo quando há estímulos externos.
“É diferente de um simples gosto ou preferência. No hiperfoco, aquilo se torna quase uma extensão da identidade da criança. Ela respira, fala e pensa sobre o tema a maior parte do tempo”, destaca Silvia.
Hiperfoco como ferramenta na aprendizagem
Quando direcionado de forma saudável, o hiperfoco pode ser uma ponte para o desenvolvimento de competências acadêmicas e socioemocionais. Professores e famílias podem utilizar esse recurso para estimular:
- Leitura, escrita e interpretação, por meio de textos sobre o tema de interesse;
- Desenvolvimento matemático, com desafios relacionados ao universo do hiperfoco;
- Comunicação e interação social, ao promover rodas de conversa ou apresentações onde a criança compartilha seu conhecimento;
- Regulação emocional, já que dedicar-se ao hiperfoco gera prazer e segurança.
“Na prática clínica e escolar, quando respeitamos o hiperfoco da criança e o usamos como ferramenta, ela aprende mais, com mais prazer, mais motivação e mais sentido”, afirma Silvia.
O caso de Aline Campos: quando o hiperfoco vira missão de vida
A história da escritora e servidora pública Aline Campos, autista diagnosticada na vida adulta e mãe atípica, é um exemplo real da potência do hiperfoco. Desde a infância, Aline é fascinada por animais. Esse interesse nunca foi apenas um hobby — tornou-se um hiperfoco que atravessa sua vida até hoje.
Durante o processo de descoberta do próprio autismo e também no acompanhamento do filho, João, Aline percebeu que podia transformar seu hiperfoco em algo maior: criar materiais educativos para promover a inclusão. Ela já escreveu seis livros infantis sobre autismo e inclusão, além de desenvolver cartilhas distribuídas em programas de acessibilidade no governo federal, incluindo o DETRAN-DF, onde atua.
“Meu hiperfoco me ajuda a ser quem eu sou. Quando escrevo sobre inclusão, sobre animais, ou sobre neurodiversidade, sinto que estou cumprindo meu propósito. É algo que me alimenta, me acalma e me conecta comigo mesma e com o mundo”, afirma Aline.
O que os pais e educadores devem saber?
Para Silvia Kelly Bosi, o primeiro passo é observar e validar os interesses da criança, sem julgamentos. “Ao invés de tentar podar, é preciso entender como aquele interesse pode ser canalizado para estimular habilidades. O hiperfoco não limita — ele pode, sim, ampliar as possibilidades de desenvolvimento e aprendizagem, desde que acompanhado com intencionalidade”, conclui.

Silvia Kelly Bosi
Cientista e neuropsicopedagoga, graduada em Psicopedagogia Clínica e Institucional, com especializações em Autismo, Desenvolvimento Infantil, Análise do Comportamento, Neurociências e Neuroaprendizagem. Certificada internacionalmente pelo CBI of Miami em Desenvolvimento Infantil e Avaliação Comportamental. Mestranda em Atenção Precoce pela Universidad del Atlántico (Espanha) e Perita Judicial certificada pela PUC-Rio. Atua com foco em avaliação neuropsicopedagógica e intervenção nos contextos clínico e educacional.
Aline Campos
Servidora pública, escritora e ativista da neurodiversidade. Diagnosticada com autismo na vida adulta, é mãe atípica e autora de livros infantis que promovem a inclusão e a conscientização sobre o espectro autista. Seu trabalho é voltado para dar visibilidade às vivências de pessoas neurodivergentes, especialmente mulheres e crianças, além de desenvolver materiais educativos distribuídos em programas de acessibilidade no setor público.