Documento da CIA revela apoio velado de Ranieri Mazzilli ao golpe de 1964

Relatório ultrassecreto agora liberado mostra que o então presidente da Câmara expressou desconfiança sobre João Goulart a diplomata dos EUA meses antes do golpe militar

Um documento ultrassecreto da CIA, liberado na íntegra nesta semana após 62 anos, revelou um capítulo crucial — e até então oculto — da história política brasileira: o então presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, confidenciou ao embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Lincoln Gordon, que estava “profundamente desconfiado” das intenções do presidente João Goulart.

A conversa aconteceu em novembro de 1963, seis meses antes do golpe militar de 31 de março de 1964. À época, Mazzilli era o primeiro na linha de sucessão presidencial, cargo que viria a ocupar interinamente logo após a deposição de Goulart, até a posse do general Castelo Branco.

O trecho da conversa entre Mazzilli e o embaixador americano havia sido censurado nas versões anteriores do “Checklist de Inteligência do Presidente” — um boletim ultrassecreto enviado à Casa Branca. Nesta terça-feira (18), a íntegra foi liberada como parte do pacote de mais de 2 mil documentos relacionados à investigação do assassinato de John F. Kennedy.

📌 Conspiração e clima de tensão

De acordo com o documento, a CIA já alertava o governo dos EUA sobre a instabilidade política no Brasil e previa a possibilidade de um golpe. O receio era de que Goulart instaurasse um regime autoritário com inclinações comunistas, alinhando o país a nações como Cuba e União Soviética.

A fala de Mazzilli, agora tornada pública, reforça a tese de que parte do alto escalão político brasileiro já articulava nos bastidores uma transição não democrática. A CIA reportava que Goulart estaria “vivendo em um mundo de fantasia” e “desconectado da realidade”, sugerindo que seu plano de centralizar o poder dificilmente teria sucesso sem apoio popular ou militar.

📍 Presença da CIA e influência americana

O boletim revela também que a CIA mantinha operações em diversas cidades brasileiras — entre elas, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Recife e Porto Alegre. O objetivo, segundo especialistas, era monitorar e, eventualmente, influenciar o cenário político no Brasil durante a Guerra Fria.

O historiador Carlos Fico, em entrevista anterior ao Jornal Nacional, já havia apontado a atuação decisiva do embaixador Lincoln Gordon na articulação do golpe. “Gordon teve papel fundamental ao convencer o Departamento de Estado norte-americano de que Goulart daria um golpe e entregaria o país a uma república sindicalista dominada por comunistas”, explicou.

Ranieri Mazzilli (esq.) e Lincoln Gordon (dir.) em foto de arquivo — Foto: Arquivo Nacional/AP

🎯 Objetivos estratégicos dos EUA

Segundo Felipe Loureiro, professor de Relações Internacionais da USP, o apoio velado dos EUA ao golpe de 1964 estava ancorado em interesses geopolíticos. “Havia um temor em Washington de que o governo Goulart criasse condições para uma crescente esquerdização do país”, afirmou.

Para os americanos, o risco não era uma transição imediata ao comunismo, mas um processo gradual que enfraquecesse os laços com os Estados Unidos em plena Guerra Fria.

🪖 Legalismo militar em xeque

O documento também cita o general Pery Bevilacqua, comandante do então 2º Exército, como obstáculo a uma movimentação golpista. Conhecido por sua postura legalista, Bevilacqua resistiu à conspiração e acabou transferido para o Estado-Maior das Forças Armadas no fim de 1963 — uma tentativa clara de neutralizar sua influência.

📍 De interlocutor a presidente interino

Ranieri Mazzilli, que expressou desconfiança sobre Goulart à CIA, viria a ser peça-chave na transição de poder. Ao assumir interinamente a presidência após o golpe, ajudou a legitimar o novo governo militar diante da opinião pública e das instituições.

O novo trecho agora revelado lança luz sobre a proximidade entre autoridades brasileiras e o governo dos Estados Unidos na véspera do golpe — e reforça o papel dos bastidores internacionais na interrupção do regime democrático no Brasil.

Os presidentes John F. Kennedy e João Goulart sentados na Casa Branca em abril de 1962 — Foto: AP Photo/Bob Schutz